Certa noite um sultão, dono de um vasto e poderoso reino, saiu de seu castelo para apreciar as estrelas e meditar sobre sua vida. Sentou-se no jardim do palácio, sobre a grama úmida, recostou-se numa árvore e viajou para o mundo das idéias, onde mora a história de todos os seres pensantes. Permitiu-se refletir sobre o próprio passado, na juventude quando conquistou vitórias com seus exércitos, nos banquetes de sua família, no vigor de seu corpo, nos amores que deixou em vão, enfim, em tudo que sua vida representou até ali.
Em seguida passou a analisar o presente, repassando cada extremidade de seu reino, imaginando-se em cada cômodo de seu castelo, carinhosamente imaginando onde estariam naquele momento cada um de seus filhos e, por fim, muitas horas depois, avaliando as chagas que seu corpo colhia a cada passo pelo caminho do tempo.
Ajeitou melhor as costas no rijo tronco da árvore e, com olhar sábio porém desencontrado, fitou o límpido céu estrelado em busca do futuro que teria pelo resto de sua vida.
Já quase amanhecendo o sultão voltou ao castelo e mandou que acordassem seu conselheiro-mor. Prontamente o velho postou-se reverentemente ao lado do trono, aguardando suas palavras.
O sultão expeliu um profundo suspiro e pediu ao conselheiro que o ajudasse com um problema:
Com ar sóbrio, que lembrava os tempos em que comandava suas legiões pelas florestas que dividiam reinos desconhecidos, ordenou que o conselheiro construísse três caixas no mundo das idéias onde pudesse guardar seu presente, seu passado e seu futuro.
Desnorteado com tamanho desafio o conselheiro pediu licença para refletir a respeito e, rumando para seus aposentos, imaginou quem seria capaz de concluir tal empreitada.
Na manhã seguinte, de um pulo o conselheiro se pôs de pé. Correu até a sala dos tesouros e, dentre todas as jóias reluzentes que faziam seus próprios olhos brilharem, escolheu uma antiga lâmpada mágica que o sultão pilhara de um inimigo há muito falecido. O conselheiro esfregou a lâmpada na esperança que o gênio que lá jazia fosse capaz de ajudá-lo. Na verdade, aquela era a única esperança do homem.
Com um ribombar de trovões, em meio a uma nuvem azul cintilante, uma indefinida forma gasosa de olhos amarelados bradou:
- Clama por minha ajuda, mestre?
O conselheiro conteve a alegria que o pusera em nervos da cabeça aos pés, dizendo:
- Meu amo é seu amo. É para ele a ajuda que lhe rogo.
- Aqui estou para servir a ambos – retrucou o espectro mágico.
- Meu amo alcança muitas primaveras e, após muito refletir, decidiu que é tempo de conservar melhor seu conhecimento. Ordenou-me que criasse três caixas no mundo das idéias, mas não disse como poderia fazê-lo. Preciso que construa uma caixa grande, inimaginavelmente colossal, para que meu senhor possa guardar todas as glórias que constroem seu passado. Para o presente, quero que empreenda uma caixa média, que possa armazenar tão somente o espírito de seu infindável intelecto, posto que o presente vive-se pouco, nascendo no futuro próximo e falecendo no imediato passado obscuro. E, como último refúgio, construa uma caixa modesta, onde possa caber o futuro de meu amo e senhor, posto que já possua idade muito avançada.
Assim fez o gênio que, seguindo as ordens, empenhou-se na empresa da construção das três caixas. Não muito depois, afirmou ao conselheiro:
- O desejo de seu amo é minha ordem sagrada. Existem agora três caixas no mundo das idéias conforme seu pedido.
Tão logo o gênio desapareceu o conselheiro empertigou-se ao pé do trono, narrando ao sultão a odisséia intelectual daquela solução de homem comum.
O sultão felicitou seu fiel conselheiro-mor e prontamente dispensou seus serviços até que terminasse de organizar sua história naquelas magníficas caixas.
Passaram-se muitos meses e o sultão ainda encontrava-se organizando a infinita morada de seu passado. Não mais cuidava de seu reino, esquecera os impostos e a família. Descuidara dos braços mais distantes de seus domínios, já cercados de bárbaros, para dedicar-se a lustrar todas as suas glórias antigas, amontoando suas lembranças obscuras. Não mais ouvia conselhos de seu conselheiro-mor, tal como fez com as súplicas de amigos e familiares.
Já sem esperanças o conselheiro, que se arrependera de tamanha loucura, voltou a procurar o gênio que debruçara sua maldita mágica sobre a sanidade de seu amo.
Esfregando freneticamente a lâmpada, sibilou:
- Sim, caro gênio, nem mesmo toda sua sabedoria de milênios de existência, nem mesmo sua mágica universal, nem os grilhões do tempo que o encerram nesta lâmpada tornando-o escravo de infinito conhecimento puderam prever a catástrofe que criaste sobre meu amo. Tu podes libertá-lo de tal tormento, infeliz lacaio?
- Tu não me deixaste escolha em tuas ordens, mestre. Se desejavas o melhor para teu mestre, que deixasse aos meus cuidados o planejamento de tal empresa tão distante de teus conhecimentos de humano – retorquiu o gigante azul.
- Então trago meu mestre para ouvir seus conselhos, se assim puder curá-lo – duvidou o descrente.
- Que assim seja mestre.
O conselheiro correu ao trono já empoeirado e, com muito esforço, persuadiu o velho e desesperado sultão a largar seus afazeres e entrevistar-se com o gênio.
Descrente da sabedoria do titânico mago universal, o conselheiro indagou:
- Se podes mesmo ajudá-lo, aponte-nos os erros de tua própria mágica!
- Tu ordenaste uma forma própria de organizar presente, passado e futuro. Minhas ordens diretas não incluíam a melhor forma de fazê-lo, apenas seus comandos de conselheiro, palavra por palavra – respondeu-lhe profética e justamente a misteriosa nuvem.
- Então aponte meus erros, se puder saná-los.
Com ar de compreensão pela insignificância dos humanos, que muito pouco sabiam a respeito dos mundos não físicos, o gênio se pôs a explicar:
- A começar pelas caixas montadas, nunca se poderia construir boa vida para qualquer que fosse o homem. A caixa maior, destinada ao passado, comporta todo o seu conteúdo com folga, porém, entre uma conquista e outra, entre o pedestal da juventude e as vitórias de guerra, gera-se o vazio. O vazio do qual todos temos medo. O vazio que se preenche de silêncio, também conhecido como esquecimento. Essa é a verdadeira morada do passado, que tem por propriedade primária tornar a vida, história, e o vivo, morto. Com uma caixa tão grande o amo nunca conseguiria sair do passado, deixando de lado quem realmente merece a maior caixa: o presente! O presente deve ser a morada do homem, pois as glórias do passado nasceram como sonhos no futuro, tornando-se realidade ao passar pelo presente. O presente é onde o homem deve empenhar seus esforços, pois um passado sujo e amontoado não obriga um presente igualmente miserável, porém, um presente mal cuidado rapidamente transforma-se em passado. Quanto maior a caixa do presente, maior será o trabalho de completá-la, obrigando o homem a empenhar-se em sua construção perfeita, tornando-a cada vez mais valiosa perante as outras caixas, fazendo com que o passado esteja sempre ordenado e permitindo a busca do elemento formador do bom presente: a felicidade. Essa é a verdadeira distribuição das caixas capaz de tornar sua vida, amo, como realmente desejas.
O velho sultão franziu as sobrancelhas e, sem conter a curiosidade, indagou:
- E quanto ao futuro, deixarei-o desorganizado, sem um lugar para acomodar? Não seria ele a morada de meus mais profundos sonhos?
E como última lição, respondeu o gênio:
- Sim, o futuro! É um tempo travesso, do qual ninguém nada sabe e, ao mesmo tempo, tudo se espera. Não se deve encerrar o futuro em caixas ou em sonhos, mas posso garantir uma coisa a seu respeito: Ele bebe do tempo e se alimenta das soluções do presente. Com uma caixa tão grande e completa de realizações presentes, o lar de seu futuro será o imenso universo e nele todas as oportunidades estarão a lhe esperar!
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