quinta-feira, janeiro 31, 2008

Samba do Mar

Sambei uma dança engraçada.
De peixe sufocado nas areias da verdade.
Chorei a música nos pés da saudade.
De quem nada num oceano de perseverança.

Não sabia do todo quase nada.
E quem muito nada um dia sofre, cansa.
Da dor nas pernas e da cor verde das algas.
Que se enrolam no emaranhado das lembranças.

O samba navegava minha mente.
O chorinho lamentava a arrogância.
De quem mergulhou no profundo azul das águas.
E naufragou no caminho da esperança.

Acordei um novo dia.
Num acordo com a vida.
Tal qual o samba que inquieta a quem passa.
Com sua graça, sua raça, sua harmonia.

Rima Noturna

Lustrosa é a bandeja de pura prata.
Onde se carregam o sorriso e a alegoria.
Planície de uma terra abençoada.
Pela doçura hipotética da vida.

Calçando os sapatos da clausura.
Vestindo o terno da sabedoria.
Acorrentado à caverna da ternura.
Preso pelas garras da alegria.

Acontece do escuro virar dia.
Molhado pelo suor boêmio da rotina.
Como uma caixa de bombons açucarados.
Saboreados em contagem regressiva.

E o que importa é fazer parte da música.
Que canta os perfumes dessa vida.
Cobrando os centavos de quem passa.
Sem cunhar pratos nessa fome de artista.

terça-feira, janeiro 29, 2008

Suspiro

A fumaça lenta subia pela encosta.
Junto com o maço de pensamentos.

De cada qual um igual.
Como as ondas que vêm em seqüências.

E os dias de sono, de discussões desnecessárias.
Todo o amor que o tempo sorve.

Absorvem a alma e o corpo do faroleiro.
Que não descansa mais os olhos.

Músculos cansados do trabalho.
Alma cansada de tanta água.

Desse oceano que nos faz boiar todos os dias.
Para lá e para cá.

Num farol apagado chamado vida.

segunda-feira, janeiro 21, 2008

São Paulo

É gostosa a manhã de São Paulo.
As ruas escuras e o vento gelado.
Garoa fina que insiste.
Lembra os ventos Europeus.
Cá e sempre estão os carros.
Que fazem as ruas nova-iorquinas movimentadas.
Pessoas com cara de cinco horas caminham a passos curtos.
Algumas indo, outras voltando.
Ainda em silêncio.
Não raro, ouve-se um bom dia bem brasileiro.
Bom dia São Paulo.
Existe ainda muito a se falar sobre a metrópole.
Seu lado cinza, fumarento e dolorido.
Não, hoje não.
Hoje é uma bonita manhã na cidade que não dorme.
Bom dia São Paulo!

domingo, janeiro 20, 2008

Cinzas

Severos são os dias de chuva.
Navios do distante pensamento.
Sonhei que passavam os dias.
Dia após dia.
Dia após dia.
A fome da alma atacou a tripulação.
Boas vindas da solidão cotidiana.

sábado, janeiro 19, 2008

Caminho

Ao caminhar sentia um cheiro.
Era um cheiro de chuva que deixava o ar estranho, leve.
E a calçada girando sob os pés com suas trincas e manchas.
Imperfeições da vida.
Tudo o que eu queria era sentir aquele cheiro.
Como buracos no asfalto do ar.
Tudo que preciso agora é caminhar sozinho...

Possuída

E ela em meus braços
A vida. Tudo
Os sentimentos; seu toque
E os corpos se encontram

Como meus braços; o envolvimento
E os delírios desse vício
Ultrapassando barreiras de pudor
Nenhum erro cometido; a luz

E o coração pulsa brandindo como uma espada
Todo o amor; os pecados
E os pecados perdoados
Uns após os outros

Toda a dor escoa de e para meu peito
E em pouco mais de cinco minutos; o tempo
Eras e eventos cabalísticos passam mais e mais rápido
Perda, fome, choro podem esperar e sofrer profanação

Nunca o amor neste
E os atos, o escuro, cada célula de meu corpo reflete
Amor incontestável

Amo-te sem dizer
Amo-te o mais que posso
Desejo-a, sim, mas amo-te
Mais que e antes de tudo

Procuro-te em mim a cada vez que respiro
Quero. Posso. És minha!
Possuída; minha
Comigo para a eternidade

EU

Sou esse Italo-Sulamericano
Simples guri
Percussão de batida profunda
Viva alma do mundo cão
Gerado da profusão de mente chocada
Grande coração
Amigo no toque e no gesto
Bicho fiel e despreocupado
Mas dá trabalho...

Grande pedaço de chão e terra firme
Naco de carinho e paixão
Quieto no princípio e espaçoso no meio
Lente turva de pensamentos
Acidente geográfico-financeiro
Tudo amontoado nos sonhos de alguém que insiste mais
Até a exaustão
Severa necessidade do ser
Humanidade difusa
Eu.

sábado, janeiro 12, 2008

Dica 02 +

[...] Por opaco, me refiro ao significante que chama muita atenção para si próprio, dessa forma obscurecendo o significado. Seus textos são, a meu ver, muito mais orientados ao significado do que ao significante - mais orientados à mensagem do que à forma em si. São bastante próximos da fábula, quase com uma "moral da história".

Cativa

Semearam no firmamento uma estrela.
Surgiu do inesperado dizendo que estava ali com sua luz própria.
Acendeu sem pedir a ninguém e ascendeu.
Chegou para ocupar o espaço que já era dela no céu e na terra.
Empurrou o sol.
Chutou a lua.
Gritou para todos que quisessem ouvir sua falta de censura.
Ocupou corações de um jeito doce.
Pediu para ficar juntinho e nunca mais se foi.
Sei dizer quando está mais fraca, mas nunca dá para saber a hora que escolheu para brilhar forte.
Sorri quando quer, não quando precisa.
Mas sente necessidade de sorrir o tempo todo.
Tira da chapelaria sua experiência sem pagar nada e deposita no altar do céu.
Tem luz que ilumina forte, mas não fere.
É gentil no toque, no gesto e não nega carinho.
Tem a beleza da cor feminina, mas não se curva para as vontades do mundo.
Quer muito mais da vida, apesar do pouco que pede.
Mas sabe o dom que tem e a palavra que lhe guia.
Cativa.
E ganha espaço por que sabe que pode e não faz corpo mole.
Dentre todos os corações que já iluminou, nenhum sequer disse que não pode.
Amiga.
Mulher.
Parceira querida.
Corre para sua vida!

Jacuzzi

O conhecimento é enorme. A abstração turva do saber alucina o pensador no complexo. Cérebro. A ágape dos Deuses de outrora. Sabor. A mente mente. Alucinação conseqüente, sua nos poros e me faz água. Entranhas. Ricas piranhas me agrilhoam os braços. Pulso. Congela. Eu? Toc-toc. Um promontório de emoções. Patética. Me rio, me mar, me oceano de água e sal. E eu me pedra. Partícula ínfima da realidade. Desprezível. Intransponível. Indivisível. Toc-toc? A curiosidade matou o gato. Belo. Chuva de rastelos. ignis-fatui da sociedade. Mentira. É meu! Luvas? Cabresto do mundo. Glub, glub, glub. Âmbar da genialidade. Loucura? Pura. Pura! Caramelo do desejo. Beijo. Santa fé da Verdade. Sexo. Duplex com vista para o mar. Machado. Amputada sociedade dos casais. Verbais. Fim da era carnal. Ruminantes. Transa diamante. Humano capado. Augusto. Magna carta da palavra. O bispado corrompido. Cumprida. Foi a estrada da falácia. Poltrona. Galileu prometido. Quixote empedrado. Cio. Espada e Jarro. Esparta. Helena engasgada. Engastada. Pedra bruta e brutal. Gorgolejo antigo. Mito. Grito abafado. Morte. Esfinge final. Confiscado és. Crimidéia confessa. Alaska. Perfume suado. Belisca o real. Nanico. Odisséia gostosa. Me árvore em vida. Fruta proibida. Paraíso fiscal.

domingo, janeiro 06, 2008

Política. E tudo isso aí.

Política? E tudo isso aí.
Quem nunca se perguntou se é uma pessoa politizada? Ou acreditou que a verdade estava em suas mãos em dado momento?
Seja qual for a causa, o fato é que quando o interesse de outrem se alargar mais que suas próprias margens os demais sentirão o desconforto da cotovelada alheia. Não há nada mais político do que defender os próprios interesses. Sempre haverá alguém com mais ou menos oportunidades para isso, mas o que interessa de verdade é que os direitos de alguns não são os interesses de outros. Aí é que o mundo vira sopa e a porca torce o rabo!
Solta-se o grito, é dada a largada, ou a contagem regressiva chega a zero e, então, aí então, liberta-se o mais profundo e socialmente abastado ser político que se encerra em nossas entranhas.
Política é isso aí, e aquilo também.
É sempre um show ver a mídia tocando as trombetas do apocalipse para um general sul-coreano, um tal de Aiatolá-não-sei-oque-lá, um primeiro ministro a serviço de uma velha rainha surda e festeira, um pequeno delito de alguns milhões de dólares aqui, uma garganta cortada ali, um avião passeando para longe de sua rota... Nada de novo no front. E quando o famoso presidente Tal desvia verbas de pesquisas e educação para um novo projeto superfaturado então?! Bom, aí ninguém sabe de nada até que se prove o contrário. E o povo? Bom, qual é a graça para nós de ouvirmos falar dessas coisas? Nenhuma. Sem prisões, sem sangue, sem mortes dramáticas ou tiros de tanques de guerra. Um grande nada. Falar do abuso de dinheiro público é chato, deixe para as campanhas partidárias! Dinheiro público tem esse nome por que é de todos e não é de ninguém, então não tem problema nenhum. De que me vale o farfalhar de notas que não estão na minha mão?
Outro dia mostraram-me um vídeo de alguns terroristas degolando um refém civil depois de um longo discurso sobre pessoas alheias em seu país, fome e mais alguns probleminhas de administração antigos, mas que aparentemente foram recém descobertos pelas autoridades. Era muito sangue que corria por entre as risadas dos algozes. Terrível, nada humano! Apertou a garganta e me lembrou Hemingway descrevendo cenas de guerra em seus livros. Enquanto isso, o tal do Aiatolá do capeta se concentrava para passar o resto de sua vida rezando pelo bem das pobres almas de seu país, tenho certeza. Tal qual o famoso autor estadunidense recém citado que, nos intervalos de suas tantas obras sobre a natureza humana e a beleza, matou 122 pessoas a sangue frio nas salas de interrogatório do exército norte americano.
O líder político-espiritual superior brinca com a morte em sua própria casa e faz isso com muita paixão, o Aiatolá. Paixão pelos seus interesses, em nome das necessidades de seu povo, que fique bem claro! Os citados reféns eram civis ou fardados que não podiam ser mortos, protegidos por uma infinidade de convenções, códigos e regras criadas para organizar as tais das guerras. Afinal a guerra é a política do bicho Homem em sua expressão final: Mais bicho, menos Homem.
É incrível a inteligência política! Até para brigar e se matar amarra-se os braços para evitar as cotoveladas e, como em qualquer briga, ganha quem bater mais forte. E adivinha quem ganha o chacoalhão diplomático dessas potências intelectuais a serviço de sua majestade, seja ela qual for?
Mas é isso que é política: pessoas cortando cabeças alheias e levando cotoveladas enquanto se acomodam nessa casinha apertada que chamamos de planeta Terra. Um mundo de egos onde a oportunidade de melhorar a própria vida pode ser facilmente confundida com luta ideológica.
Alguns fatos são e nunca deixam de ser. Eu quero mais, você quer mais, ele, ele e aquele também querem e essa é a função de ambos; do querer e do dinheiro. E a dignidade? O dinheiro já ultrapassou também e o máximo que você pode fazer por ela é comprá-la por um preço que varia entre um afago com a mão e o gosto metálico do sangue que jorrava da garganta daquele tal civil, o que morreu na mão dos terroristas.
O Aiatolá e o primeiro ministro pagam o preço, seja ele qual for. E você? Para onde você acha que vai o petróleo, a dignidade, a educação e o alimento que pertencem tanto ao civil quanto aos terroristas? Você, que está lendo esse texto impresso em papel ou no computador, já comeu hoje? Não estou dizendo que a culpa seja minha ou sua, deixo-a para nossos Aiatolás, ministros e presidentes, mas o fato é que o sangue alheio sempre é bonito de ver ameaçado. Quem não ficaria orgulhoso de ter o exército mais bem armado e treinado do mundo? “Joga uma bomba nesse país que logo tudo se resolve!”; “Esses caras não são gente, são animais!” Prefiro chamá-los de ferramentas e acreditar que o ministro, o Aiatolá e o presidente desviam a verba da educação que deveria transformar essas ferramentas em homens de verdade, com dignidade e cultura, como eu e você. Então, nossa posição nessa guerra só poderia ser uma das duas: a do civil degolado, que nada pôde falar, ou a do Aiatolá que teve oportunidade de estudar e tirar proveito da ignorância alheia. E aí? Que poder tenho eu por não ter me tornado nada disso? Quanta dignidade quero mostrar escrevendo um texto, apontando o dedo para meu próprio futuro e para o seu também, seja ele qual for? E faz diferença? Será que o personagem correto para mim não seria o degolador, aqui no teclado, usando uma arma tão afiada quanto a faca?
A política alheia não será tocada pela minha revolta, nem por mil outros textos iguais a este. Ou facas. Mas estou fazendo minha parte na guerra política, massageando meu ego e acotovelando todos que me possam sentir nesse momento.
Seria isso o correto?
Não sei. Julgo e julguei. Mas minha cabeça ainda comanda meu corpo, minhas mãos não estão sujas de sangue e ainda não tive oportunidade de superfaturar nada por punhados de dólares. Como vou saber se tudo isso é certo, se é certa a política... e tudo isso aí?

quinta-feira, janeiro 03, 2008

A Batalha

- Raposa uno, entendido. Virando à esquerda para zero-meia-zero, descendo e mantendo nível de vôo a zero-três-quatro, apontando vetores para cabeceira três-cinco.
Com a mão livre, Tomas aliviou cuidadosamente a correia do capacete enquanto coordenava os comandos de seu caça F-15, mergulhando-o numa ligeira curva descendente à esquerda.
Após estabilizar o avião, acionou os últimos comandos de pouso e enxugou o suor de seu queixo, sentindo a luva áspera irritar sua pele.
- Raposa uno, vire à esquerda para três-cinco-zero, permissão para pouso cabeceira três-cinco. Cheque trens baixados e travados.
Tomas tentava se concentrar, porém o barulho dos motores parecia sorver qualquer luz de seus pensamentos. Suava muito sob o sol causticante que o vidro da cabine ampliava como uma enorme lupa. Aquele frio na boca do estômago que o acompanhava durante o princípio de cada missão, da base até o local da batalha, e que só o deixava após a certeza de ter visto o último avião inimigo se espatifando em chamas contra o solo ainda o molestava como se o confronto ocorresse naquele exato momento. Ele podia ver em sua mente aviões caindo em parafuso, envoltos em fumaça, consumidos inteiramente pelo fogo. Pilotos ejetando em meio ao nada e caindo em solo hostil com seus corpos queimados pela metade, gritando à plenos pulmões, sentindo o vento gelado bater violentamente como dezenas de cacos de vidro encravando-se em suas queimaduras.
Tomas sentiu a boca seca e pela primeira vez em três anos, desde seu batismo de fogo, duvidou de sua vocação para aquilo.
- Raposa uno, recebeu minha última transmissão? Tomas, o que está havendo!?
Houve silêncio por mais alguns segundos.
- Raposa uno, entendido. Virando à esquerda, três-cinco-zero, cabeceira três-cinco, trens baixados e travados.
Tudo se apagara de sua mente naquele instante. Com ele estavam apenas a secura de sua boca e o frio que parecia surrar seu estômago e que não o deixara em momento algum.
Sete minutos depois o avião tocava o solo. O som dos pneus correndo a pista de rolagem e a pressão de seu próprio peso sobre o traseiro trouxe imediatamente uma sensação de conforto anestésico ao piloto.
Percorreu a base até o hangar 14, assim como indicado pelo comando de solo, desligou os motores, os instrumentos e abriu o cockpit do avião sem sair do lugar. Tirou o capacete e repousou-o sobre o abdômen. Deixou-se ficar ali sentado por alguns segundos, de forma relaxada, com as mão sobre a máscara de oxigênio.
Totalmente parado, sentindo o ar voltar devagar aos pulmões...

terça-feira, janeiro 01, 2008

Dica 01 +

Adjetivar menos, mais foco.
A vedete era o pensamento do sultão e a busca pelo futuro escrito nas estrelas, não a rigidez do tronco ou a visibilidade do céu.
O adjetivo traz bem o caráter de fábula para o conto, mas não pode se tornar um ruído para o que realmente está em discussão no texto.
Observar nas próximas oportunidades!

Fim dos Tempos

Fosse hoje o inevitável último dia
Do fim dos tempos, o tempo
O outono de todas as vidas

Não sei se me sentiria rico ou pobre
Duvido que por isso choraria
Do Sol nunca mais veria a orbe
Se na chuva, do frio agora esqueceria

Dos amigos raramente ao meu lado
Saudades dos almoços em família
Na mente não teria a dor que mata
Os prazeres e as belezas dessa vida

Pincelaria os minutos com memórias
Felizes frutos da sabedoria
Imagino outros tempos ressoando
Num acorde recheado de alegrias

Não questiono o tamanho das saudades
Dos abraços que jamais receberia
Sofreria, ainda em vida, o temor do texto
Esquecido no palco, papel dobrado na coxia

Mas há sempre uma certeza bem guardada
Nos pensamentos de quem ontem escrevia
Algo que não se carrega para os vales
Findo o alvorecer dos novos dias

Dos meus olhos saltariam mil palavras
Minha alma bruscamente invadiria
Teu coração, como quando a procurava
No primeiro, do primeiro, dos meus dias.

O Sultão

Certa noite um sultão, dono de um vasto e poderoso reino, saiu de seu castelo para apreciar as estrelas e meditar sobre sua vida. Sentou-se no jardim do palácio, sobre a grama úmida, recostou-se numa árvore e viajou para o mundo das idéias, onde mora a história de todos os seres pensantes. Permitiu-se refletir sobre o próprio passado, na juventude quando conquistou vitórias com seus exércitos, nos banquetes de sua família, no vigor de seu corpo, nos amores que deixou em vão, enfim, em tudo que sua vida representou até ali.
Em seguida passou a analisar o presente, repassando cada extremidade de seu reino, imaginando-se em cada cômodo de seu castelo, carinhosamente imaginando onde estariam naquele momento cada um de seus filhos e, por fim, muitas horas depois, avaliando as chagas que seu corpo colhia a cada passo pelo caminho do tempo.
Ajeitou melhor as costas no rijo tronco da árvore e, com olhar sábio porém desencontrado, fitou o límpido céu estrelado em busca do futuro que teria pelo resto de sua vida.
Já quase amanhecendo o sultão voltou ao castelo e mandou que acordassem seu conselheiro-mor. Prontamente o velho postou-se reverentemente ao lado do trono, aguardando suas palavras.
O sultão expeliu um profundo suspiro e pediu ao conselheiro que o ajudasse com um problema:
Com ar sóbrio, que lembrava os tempos em que comandava suas legiões pelas florestas que dividiam reinos desconhecidos, ordenou que o conselheiro construísse três caixas no mundo das idéias onde pudesse guardar seu presente, seu passado e seu futuro.
Desnorteado com tamanho desafio o conselheiro pediu licença para refletir a respeito e, rumando para seus aposentos, imaginou quem seria capaz de concluir tal empreitada.
Na manhã seguinte, de um pulo o conselheiro se pôs de pé. Correu até a sala dos tesouros e, dentre todas as jóias reluzentes que faziam seus próprios olhos brilharem, escolheu uma antiga lâmpada mágica que o sultão pilhara de um inimigo há muito falecido. O conselheiro esfregou a lâmpada na esperança que o gênio que lá jazia fosse capaz de ajudá-lo. Na verdade, aquela era a única esperança do homem.
Com um ribombar de trovões, em meio a uma nuvem azul cintilante, uma indefinida forma gasosa de olhos amarelados bradou:
- Clama por minha ajuda, mestre?
O conselheiro conteve a alegria que o pusera em nervos da cabeça aos pés, dizendo:
- Meu amo é seu amo. É para ele a ajuda que lhe rogo.
- Aqui estou para servir a ambos – retrucou o espectro mágico.
- Meu amo alcança muitas primaveras e, após muito refletir, decidiu que é tempo de conservar melhor seu conhecimento. Ordenou-me que criasse três caixas no mundo das idéias, mas não disse como poderia fazê-lo. Preciso que construa uma caixa grande, inimaginavelmente colossal, para que meu senhor possa guardar todas as glórias que constroem seu passado. Para o presente, quero que empreenda uma caixa média, que possa armazenar tão somente o espírito de seu infindável intelecto, posto que o presente vive-se pouco, nascendo no futuro próximo e falecendo no imediato passado obscuro. E, como último refúgio, construa uma caixa modesta, onde possa caber o futuro de meu amo e senhor, posto que já possua idade muito avançada.
Assim fez o gênio que, seguindo as ordens, empenhou-se na empresa da construção das três caixas. Não muito depois, afirmou ao conselheiro:
- O desejo de seu amo é minha ordem sagrada. Existem agora três caixas no mundo das idéias conforme seu pedido.
Tão logo o gênio desapareceu o conselheiro empertigou-se ao pé do trono, narrando ao sultão a odisséia intelectual daquela solução de homem comum.
O sultão felicitou seu fiel conselheiro-mor e prontamente dispensou seus serviços até que terminasse de organizar sua história naquelas magníficas caixas.
Passaram-se muitos meses e o sultão ainda encontrava-se organizando a infinita morada de seu passado. Não mais cuidava de seu reino, esquecera os impostos e a família. Descuidara dos braços mais distantes de seus domínios, já cercados de bárbaros, para dedicar-se a lustrar todas as suas glórias antigas, amontoando suas lembranças obscuras. Não mais ouvia conselhos de seu conselheiro-mor, tal como fez com as súplicas de amigos e familiares.
Já sem esperanças o conselheiro, que se arrependera de tamanha loucura, voltou a procurar o gênio que debruçara sua maldita mágica sobre a sanidade de seu amo.
Esfregando freneticamente a lâmpada, sibilou:
- Sim, caro gênio, nem mesmo toda sua sabedoria de milênios de existência, nem mesmo sua mágica universal, nem os grilhões do tempo que o encerram nesta lâmpada tornando-o escravo de infinito conhecimento puderam prever a catástrofe que criaste sobre meu amo. Tu podes libertá-lo de tal tormento, infeliz lacaio?
- Tu não me deixaste escolha em tuas ordens, mestre. Se desejavas o melhor para teu mestre, que deixasse aos meus cuidados o planejamento de tal empresa tão distante de teus conhecimentos de humano – retorquiu o gigante azul.
- Então trago meu mestre para ouvir seus conselhos, se assim puder curá-lo – duvidou o descrente.
- Que assim seja mestre.
O conselheiro correu ao trono já empoeirado e, com muito esforço, persuadiu o velho e desesperado sultão a largar seus afazeres e entrevistar-se com o gênio.
Descrente da sabedoria do titânico mago universal, o conselheiro indagou:
- Se podes mesmo ajudá-lo, aponte-nos os erros de tua própria mágica!
- Tu ordenaste uma forma própria de organizar presente, passado e futuro. Minhas ordens diretas não incluíam a melhor forma de fazê-lo, apenas seus comandos de conselheiro, palavra por palavra – respondeu-lhe profética e justamente a misteriosa nuvem.
- Então aponte meus erros, se puder saná-los.
Com ar de compreensão pela insignificância dos humanos, que muito pouco sabiam a respeito dos mundos não físicos, o gênio se pôs a explicar:
- A começar pelas caixas montadas, nunca se poderia construir boa vida para qualquer que fosse o homem. A caixa maior, destinada ao passado, comporta todo o seu conteúdo com folga, porém, entre uma conquista e outra, entre o pedestal da juventude e as vitórias de guerra, gera-se o vazio. O vazio do qual todos temos medo. O vazio que se preenche de silêncio, também conhecido como esquecimento. Essa é a verdadeira morada do passado, que tem por propriedade primária tornar a vida, história, e o vivo, morto. Com uma caixa tão grande o amo nunca conseguiria sair do passado, deixando de lado quem realmente merece a maior caixa: o presente! O presente deve ser a morada do homem, pois as glórias do passado nasceram como sonhos no futuro, tornando-se realidade ao passar pelo presente. O presente é onde o homem deve empenhar seus esforços, pois um passado sujo e amontoado não obriga um presente igualmente miserável, porém, um presente mal cuidado rapidamente transforma-se em passado. Quanto maior a caixa do presente, maior será o trabalho de completá-la, obrigando o homem a empenhar-se em sua construção perfeita, tornando-a cada vez mais valiosa perante as outras caixas, fazendo com que o passado esteja sempre ordenado e permitindo a busca do elemento formador do bom presente: a felicidade. Essa é a verdadeira distribuição das caixas capaz de tornar sua vida, amo, como realmente desejas.
O velho sultão franziu as sobrancelhas e, sem conter a curiosidade, indagou:
- E quanto ao futuro, deixarei-o desorganizado, sem um lugar para acomodar? Não seria ele a morada de meus mais profundos sonhos?
E como última lição, respondeu o gênio:
- Sim, o futuro! É um tempo travesso, do qual ninguém nada sabe e, ao mesmo tempo, tudo se espera. Não se deve encerrar o futuro em caixas ou em sonhos, mas posso garantir uma coisa a seu respeito: Ele bebe do tempo e se alimenta das soluções do presente. Com uma caixa tão grande e completa de realizações presentes, o lar de seu futuro será o imenso universo e nele todas as oportunidades estarão a lhe esperar!