domingo, maio 29, 2011

Contrato


Devia existir uma cláusula no contrato da vida humana
Que proibisse um sentimento de não ser exprimido
Que permitisse não tornar a tristeza um crime
E que qualquer sentença fosse inferior à solidão

Haveria um meio de sentir-se triste
Sem torturar o coração alheio
Não seria necessário retrucar os anseios
Nem fazer do amor uma dívida depositada em juízo

As dores passariam com o tempo
Sem que ao menos alguém as visse
Ou seriam uma paisagem displicente
Como um navio que abandona o porto

Os casais se abraçariam num dia frio de inverno
Sentados muito juntos em bancos de praças
Assistindo o pôr do sol maravilhoso
Das dores que atravessam muito além do nosso corpo

Esta clausula garantiria a qualquer um do mundo
Que nunca mais se sentisse sozinho
Pois quem tem muitos iguais à sua volta
Nem sempre aprende a ficar em paz consigo

terça-feira, maio 17, 2011

Guerra e Paz

Folha de São Paulo, quinta-feira, 31 de março de 2011
Da seção Painel do Leitor

[ Espantado com a facilidade e a rapidez com que os líderes políticos mundiais se mobilizam para, digamos, “expandir a democracia a bala” em lugares como a Líbia, o Iraque e o Afeganistão, fico a imaginar o que os impede de se mobilizarem para ajudar o Japão a conter uma contaminação radioativa que já se alastra. Em outras palavras, por que as mobilizações para “matar pessoas” são tão eficientes, e as mobilizações para “salvar vidas”, tão inexistentes? ]

Lázaro Curvêlo Chaves (S. J. do Rio Pardo, SP)

segunda-feira, maio 16, 2011

2025


Chegou em casa devagar.
O relógio pesava uma tonelada da manhã.
Sentiu o corpo cansado demais para cair na cama.
Seguiu até a cozinha, mas o estômago negara a comida três vezes.
Queria uma bebida, a saideira. Esticou a mão numa cerveja.
Não sentia mais os pés. O corpo todo retesado de dor e cansaço.

Arrastou-se até o quarto para tirar todo aquele cinto apertado.
Jogou os pés contra os chinelos e os braços na camiseta surrada.
Pensou por um momento que aquilo não era vida.
Trânsito o tempo todo.
Subiu no sofá e ligou a televisão. Desligou a televisão.
Pensou em ligar para a namorada, mas já era tarde demais.

Dividiu a cama com mais pensamentos.
Ligou o aparelho para ouvir música. Desligou o aparelho.
Sentia dor em cada vértebra do corpo magro.
Não rezava mais por aquela rotina.
Amava o esforço que fazia todos os dias.
O namoro de final de semana e a cerveja com os amigos.

Não amava mais a cidade.
Sabia que o sentimento não era dele. Era urbano.
Levantou cheio de sede e tropeçando no banheiro.
Uma língua translúcida de cloro vasou pela torneira.
Caiu em desgraça o paladar, último bastião dos sentidos.
Já basta.